27.2.07

Quarenta e Sete

A Surdez. Clarisse é rodiada de espelhos. Tudo é ver-se em estranhos. Ver-se é estranho. Nada é familiar quando se trata de entranhas. Ver-se em estranhos, ver entranhas, as suas. (A redoma do espelho, criar identidade é ser ver no mundo, seus reflexos, e o que ela sente, é água turva, a que tem começo avesso). Cada linha de sua pele... ela rompe bem. Não pára mais em frente a si. É outro traço.
O que se sente do mundo são nossas entranhas. O que é isso que teima em vibrar? Cala boca teia imbecil! Deixa doer ainda um pouco. Tudo demora a ficar morno. Ver o avesso é vir-a-ser. Ela a mercê de constantes encontros. O avesso é aquilo que não se mostra. Acabaram os segredos. Clarisse está surda.

Quarenta e seis

O óbvio tem de acontecer, afinal esse caos é repetição. Não sei... esgotou-se as possibilidades, o espelho quebrou. O que começou em vento acabou por terminar em água turva. Sem final. Sem uma chance para a porta abrir. Apenas esgotar as possibilidades. Para que Clarisse pereça bela.
Daquelas horas, uns arrastos riscados pelo chão, trincados pela parede. E será que ela pode? Não serão devaneios da febre asmática? É longo e o tempo ficou no chão. Dormir não é descanso. Caminhando num espaço frágil e sem tempo. Para assistir os poemas se repetirem. Desenterrar dores não sentidas, os medos, o choro. Calar os dias. Caminhando. Construir mentiras. Clarisse correu, correu muito num círculo fechado. Era escuro, demorou a ficar zonza. E foi que correr ganhou ritmia densa. Um olho para cada vez. Parecido com o olho de dentro. (Ela podia quebrar a memória, romper os sentidos – paralizá-los) Talvez uma outra quase-morte. Já foram tantas, não que isso pese, mas tem o exagero. Como se houvesse traduções para essa língua. Perde-se a memória dos sentimentos, a não ser que fique escrito. Tortuosos fios elétricos. Ferida vermelha, podre, preciso ver. Ser poemas, ela aprendeu a dançar.

Quarenta e Cinco

E cantou sua canção de morte, e cantou em uma voz de pele estrangeira. Por tantos sóis, a cabeça esteve baixa enquadrando os esgotos... procura a sombra, a sombra porra! Era uma rua sem calçadas, ela sentia pés passarem ao lado dos seus, ocorriam encontros entre ombros. Enquadrava algo que a encantava, ao som de gritos, muitos gritos, belos. Ela não entendia nada.
É um tempo que não passa. Nunca passou. Tempo é escolha, um motivo para ficar. Clarisse não espera mais o tempo, ela não tem por quem ficar. E se tivesse não seria livre. Quanto a ser honesta, isso nunca entrou em questão.
Há beleza no meu toque em Clarisse, quando brincávamos juntos, tudo era espera. E o que sobrou da memória? Ficou um dissabor, um azedo na pele murcha. Pensou contar que idade tinha, olhou as mãos, não tinha calos. Ainda esta com quatorze anos. Como aquela canção do moço que morreu triste. Engraçado, hoje se encontra força na tristeza, uma espécie de auto-compaixão, parecida com aquele tempo antes do messias. O que ficou perto permaneceu lembrança.
Uma sombra, seu bocejo. Lembrou-se dos cães, nas noites que se masturbou pensando em seus dentes, na complacência em não amamentar nada e ninguém. Fiel. Seu cio um motivo para inquietar as moscas. Hahahahahahaha.... Dança, rindo alto, plena de segredos. Ela já se mostrou a todos, gritou sua nudez crua, e alguém viu? Deixou-se tocar? Permitiu-se sentir? Hahahahaha... Ah! Clarisse entende seu amor, cria, destrói para o nada! Ela o habita, em cada não, em cada fechar de olhos, em cada multidão sozinha. Ela toca, e tudo vira pedra.

19.4.06

Quarenta e Quatro

Ao tocar ela sentiu medo, como as outras vezes. O medo a conservou inteira. E o que era parte, cicatrizou na memória. Pois ao tocar a outra, ela tocou também seu avesso.E ao tocar a outra, sentiu-se dentro de seu avesso. Assim sempre foi. Ao tocar a outra, tudo ganhava sentido cru. Algum sentido. As partes, tão pequenas – pensava ela. Clarisse sabe que é grande, também sabe que viver é uma mentira. Mas como medir o absoluto? De tão grande, seria o mesmo que nada, não cabe em linguagem, em expressão heróica. Dentro d’água pensou em flutuar, com milhares de pessoas ao redor, todas elas, e seus cheiros somente. Muitas fedem, Clarisse não se mexe. A água mexe, mas há um momento, imperceptível aos corações descuidados, em que tudo pára. Sim, é verdade. Clarisse já fez essa experiência por muitas vezes, e é por isso que ela está aqui, hoje, dentro do banheiro. Quando o tudo pára, é para o nada soprar. O nada sopra em silêncio, e os ouvidos de Clarisse estão prontos para quando a surdez chegar. É em seu reflexo, vasto de detalhes, que ela verá o absoluto calar. Nas pernas nota-se os vasos trincarem, é gargalhando que Clarisse pensa no desastre que é a vida humana. Não há tempo, quando se quer controlá-lo.

Quarenta e Três

É uma merda quando demora pra anoitecer. Merda pior quando demora para se encontrar n’algum lugar. Fazia tanta bagunça dentro de si, quase como o monstro que se refletia sempre que ela se olhava no escuro, naquele espelho que sempre tinha debaixo da cama. Ela não se via muito bem, procurava os olhos, duas bolas pretas, enormes, movimentando-se no branco onde aparecia um pouco de luz da rua. Fixava algum tempo, até ver o monstro. Clarisse conversava com esse monstro sempre que não tinha medo de si. Nas outras vezes, ela sorria amarelo, e dizia pra si mesma que estava com sono.
Ela não tinha aquele espelho, tão pouco era escuro. A tomada ficava do lado de fora, e a poeira dos vidros não permitiam Clarisse distinguir que hora do dia se passava, afinal. Luz sempre havia, tanto à noite como ao dia. Isso irrita qualquer um, não há extrema escuridão e solidão nessa porra de cidade? O ralo se entende bem com isso, Clarisse meteu a fuça bem perto, não cheiro, mas baratas se mexendo. Quase-silêncio... incrível! Escuras, sujas... Clarisse retoma feto e estende a mão às suas irmãs. "Quem tu vês na pele alheia? É mentira que um dia criaste identidade, as putas não criam nada, ouves bem? As putas não criam."
Somos centavos, não dá pra rasgar, limpar o cú... de quando em mais, aspirar pelo nariz e coçar as hemorróidas.
Era pra ausentar o sentido, mas Clarisse é pele só. Foi pra lua, e tocou o silêncio, o absoluto. Pensou que não ia resistir, talvez decompor-se, tornar-se gás. Matar alguém para levar junto ao eterno. Se dissolver inconsciente, não ver, não ouvir, não cheirar, não doer, não rir, não amar, não se dar, não tomar, não ser.
Não ser NADA.

12.7.05

Quarenta e Dois

Quando foi mesmo que tudo isso começou? Não mais que alguns séculos... desde que o homem se declarou centro do mundo. Gritaram, mas quem se importa? Os acertos são méritos racionais, os enganos: castigos divinos. Ainda que Clarisse seja livre, suas veias estão manchadas de tanto tentar se renovar.Que sentido faz romper o cordão? De que serviu romper com a memória, romper as verdades do mundo?, Clarisse não consegue romper consigo mesma. Mastiga com nojo a suavidade do ar sujo. Fecha os olhos e vê um lençol manchando o azul, a definhar ao sol. Sempre haverá o peso morto, nada se renova por completo. Talvez seja preciso Clarisse acreditar no que não vê, e aceitar o beijo gélido de seus fantasmas.. mas não foi isso que aconteceu. Seus horizontes não estão mais lá. O mais distante que ela vê são manchas, mesmo que feche os olhos, mesmo que tudo se resuma a nada, o silêncio persiste em manchar a falta de sentido. As lágrimas se cansam de cair, estão machucadas. O corpo se cala na busca de calos. Seus seios recebem um suspiro, não há depois para se pensar.

Quarenta e Um

Sua cicatriz começa a doer. Clarisse na noite que passou, havia sonhado com sua mãe. Já não era a primeira vez que tinha o mesmo sonho. Sua mãe era outra, era sua irmã, só que falava, e tinha outros dois filhos mais novos. "Será que vai romper novamente?". Sempre que sonhava isso, acordava com um vazio desconfortável (coisa rara em Clarisse, seus vazios são saborosos). Ela amanhecia com o olhar cúmplice. Nota com certa admiração os traços maternos que vem tomando conta de seu rosto. Não há rugas, mas as sente por debaixo da pele. Clarisse herdou o cansaço. O pai não se lembra, acha que ainda é vivo, mas não se importa em saber. Está sangrando. O que fazer quando a ferida torna a abrir? Até calos já tinham se criado. O sangue não era o mesmo, a dor não era a mesma. Um pequeno risco. Chegara a pior parte, o desconforto da solidão. As violetas são jogadas roxas contra a parede. Um susto. Não há mais cicatriz para acariciar, ela sumiu.

8.6.05

Quarenta

"Alice esperava, aflita, o próximo tombo." Ela e o espelho-mundo são paralelos. As frases se entre cruzam. O reflexo é fotografia canhota. Se o reflexo é canhoto, Clarisse é destra. Direita, correta. Blábláblá... mentiras. Não há dualismos, nem verdades. Clarisse e o espelho-mundo existem (ponto). O que importa saber o que ou quem ela é? O fato é ato, e ela é. (Lálálá... everyone is something) Mas o ser perdeu a beleza, e sem beleza Clarisse não goza. Assim sendo, ela mutila-se, destrõe a fonte dos reflexos... não o espelho, mas ela-mundo. Destruir-construir, não hoje... somente destruir. Cansar e ferir o que pode ver. O sangue tem dor violeta, e logo quando adormece no chão, é cinza. Qual é o aborto dessa vez? Qual monstro morrerá? O bom-que-sofre ou o mau-que-goza? Clarisse não vai escolher, nem tão menos criar. Sua arte está morta. O coração bate, Clarisse dança, invoca o nada, a cegueira, a surdez, a dormência. A saliva escapa para raptar gostos secos. Clarisse encosta os lábios no ralo imundo da pia, grita. Grita para os restos gozarem a dor. Grita alongando sua língua em beijo lúgubre. Não importa os espelhos do mundo, ela renegou sua imagem.

Trinta e Nove

"E se for assim? Esse cubo não é mágico." Ouviu dizer que o fim está próximo, não se lembra exatamente quem disse, mas alguém o disse. Talvez tenha sido algum crente querendo seu arrependimento. Quem além de mim já amou Clarisse? É nocivo, muito nocivo compreender o vazio. E ela simplesmente o toma no colo, e brinca com ele. O que mais invejo em Clarisse é que ela tem 14 anos, e não cria calos no espírito. Aquele limo, a luz anêmica, o cheiro do mofo, as violetas que fracassam na sua ressurreição... todo esse cubo é Clarisse. Ela não ousa abrir a porta, pois permanecerá frio e cinza. Ela é aquela estátua sem cabeça que recepciona obscuridade no hall de entrada, onde, por certo, a luz deveria entrar, mas não entra. Clarisse não tem olhos pra ver a luz. Clarisse está nua. As veias transparecem. É utópico pra mim se suportar sozinho. O que não tem seu reflexo no mundo? O quê? Ela furaria os olhos para não se ver mais nas coisas, não ver sua dor, não excitar-se da sua fealdade. E de que serve? Todos olhos porosos teriam, também, que ser furados. Mas poros são buracos. E buracos negros não se fecham, apenas engolem.

Trinta e Oito

Houve um tempo em que Clarisse acreditava em significados. Perdia horas procurando pelo que não havia perdido. O que dizer sobre as cinzas? O que em Clarisse não é assim, até mesmo seu sangue, quando fora de si, toma tons de concreto. Se suas olheiras não fossem tão negras, se pintaria de carvão. O que o corpo vai fazendo com tudo aquilo que não o compõe? O que falta para as cinzas se tornarem puras? A cegueira. Se o universo não fosse tão pequeno - uma vez disse Clarisse - ela beberia todo leite que desenha o caminho da galáxia. Poucas vezes Clarisse acolheu um respirar suave ao seu lado. Não há motivos, por que a curiosidade com a vida? Era somente um espelho, era ela tentando ver-se de perfil, depois suas costas. Clarisse corria para longe... até cansar e dar-se por conta que o objetivo nunca possui signo pra ela. O universo não cabe em seu vazio, nenhuma porra sacia, pois o tudo são restos, o tudo está em pedaços - pequenos pro buraco de Clarisse. Nunca poderá engolir o tudo... nunca. Medíocre - "não serei comida por pedaços...". Clarisse cospe o dedo pra fora da boca. Queria morrer, mas para todo lugar onde mira, há reflexos dela. Será que está condenada a se ver no mundo? Mas se assim fosse, o que ela veria, se se considera nada. Clarisse é recorte. Não absoluto.

28.2.05

Trinta e Sete

"Bom dia menina de olhar cansado!". Com a mão longe de seus olhos escala sua coluna. As digitais pintam bigodes felinos nas costelas destacadas no relevo de campos vastos e improdutíveis. Improdutíveis e solitários. Grandes de mar salgado, longes do persistir. As costas desistem facilmente, esquecem da pele-manto que as protege. As unhas sujas, a concentração de inspecionar o que não está. Sim, ela sempre procura pelo que não está, não é. Depois de certa sobre isso relaxa e respira aliviada. Consegue até sentir o cheiro cansado de todos buracos, que espreitam sua queda eterna. Pode até ser que nada esteja nela, mas é impossível provar que nada esteja com ela. Que tormento... Ao menos se furasse os olhos. Clarisse nasceu para ter limites, e ela sempre preferiu não ter nenhum.

Trinta e Seis

Esperou, esperou, até que decidiu por ela mesma se invadir. Juntou dois dedos, e penetrou no seu cu. Sentiu os seios enrijecendo, e apalpou o excremento macio que se alojava quente. Pensou em tudo que compunha o resto, e do quão derme era aquele momento. Ela só queria tocar e ser tocada. O anel tencionava e relaxava, Clarisse, como qualquer ser, é impotente diante ao movimento. Seu corpo reinventava ritmos, tudo soava como uma complexa música de sentimento simples. Ela oscilava entre o sentir e se sentir... dançava licenciosamente. Juro que me excito em presenciar isso, as respostas estão tão claras e Clarisse teme despertá-las do seu sono casto. Já que és impotente para compreender, ela prefere não saber, e contemplar a beleza da respiração de todos segredos guardados.Até quando? Eu não sei, mas sei que não é esse o momento. Pesar o sentir é privar-se dele. É claro que ela morrerá, e tudo perderá o sentido, mas o que importa? Ela é bela, acima da dor e do prazer. Ela se sustenta no espelho, e só cabe a mim quebrá-lo.

Trinta e Cinco

Por um instante, Clarisse pára e nota sua beleza. Permite-se olhar sem censura e curiosidade. Apenas sente seu estar. O chá salgado não serve mais para amenizar a dor. Tudo é, e a composição desse momento magnífico de amor de Clarisse com ela mesma, só cabe à moldura do espelho. Ela se vê, sente quão impotência existe no compreender. Não se compreende nada, o egoísmo só nos provém para moldarmos coisas aos nossos sentidos. Quem é essa menina, mulher, coisa? Nem arrogante, nem fraca, Clarisse é estanque. Abriu os poros, e espera por algo que virá para invadi-la. E ela apenas gozará, sem pesar, sem querer se importar. Clarisse tem medo da solidão, mas agora ela quer estar e saber ser sozinha. A morte já marcou hora, ela quebrou o relógio e seu tempo.

17.1.05

Trinta e Quatro

Muitos psicólogos dizem que todo ser humano procura preservar a própria vida, renegar a idéia de uma morte cruel e além de tudo isso, convivendo com o medo e o desejo, procurar a felicidade. O instinto de preservação de Clarisse nunca foi muito aguçado, por ter sentido (e abrigado) a solidão por muito tempo na sua infância, ela acreditava não causar mal nenhum ao mundo. Sentia como se fosse apenas ela, o tudo e o nada. Enquanto viva ela seria o tudo, e morta o nada. Ainda confusa com a resposta do seu reflexo, Clarisse imaginava como seria o casamento do tudo e do nada. Seria isso possível? De todos antagonismos trágicos que Clarisse já leu na vida, ela sempre preferiu o final onde o impossível encontrava descanso na morte. E o impossível descansa? Ela não sabe, e agora dúvida de tudo, até mesmo do seu cansaço. Com as lágrimas secando pelo corpo, Clarisse sorri inocente para a luz anêmica que ainda grita. Clarisse é par antagônica de si mesmo. Ela descobriu a mentira que faltava.

Trinta e Três

Ela que pensava conhecer tão bem seu amor pelo nada, notou que nunca o teve. Sempre tomada pelo tudo, por certezas, memória e esperança. Como ela, o algo, poderia amar o nada, e ainda, querer ser amada? Afinal o que ela possuía? E quem a possuía? Quando contemplava, ela era o nada, Clarisse se amava de forma tão narcisista e egoísta que sempre esteve submersa na falta de sentido. Que menina boba, nunca percebeu que o amor da sua vida é seu próprio reflexo. Hoje ela se terá, tocará o nada, beijará seu avesso. A decisão já foi tomada, Clarisse fita os olhos no espelho e pergunta ao reflexo: "Quem sou eu em você?". Passado alguns piscares de olhos, o reflexo lhe responde: "eu sou o nada do tudo que és mim, prestes a não ser, prestes a ter sido." Clarisse entende a resposta, e chora.

13.12.04

Trinta e Dois

"O melhor que eu puder". Os sons perderam o significado sujo. "Mas o melhor nunca é suficiente". Os superlativos nunca se bastam, inclusive o pior. Apenas quando se está só, se pode ser superlativo. Só, se é o que se quer. Inclusive assassino. Nada mais assusta, Clarisse sente frio, não na pele, mas em alguma parte dentro dela, não sabe se são seus nervos que tremem, ou alguma parte da região do tórax. Seu planeta começa perder a órbita, cai sem desvio, e apenas aguarda o momento em que irá se chocar com algum objeto não identificado (por ela). Longe de querer pensar em adjetivos, Clarisse apenas existe, nada mais. Ela chega no lugar onde sempre quis estar (e sempre esteve), no vazio.

Trinta e Um

Nunca entendeu direito de onde provém a luz, qual sua composição e sua fórmula. Energia. Seus seios começam a aumentar, o corpo se prepara para envenenar um novo ser. Mas pouco importa, o presente não é de fato, lembranças são construções de imagens. Em cada estrela falecida, o mesmo desejo implorado em tanta outras vezes. Na dor sentia-se viva, pois sentia-se profundamente, conhecia cada canto obscurecido. Clarisse foca o olhar para o centro de tudo, e vê apenas um ponto. O movimento transformara-se numa lentidão absurda, quase estática. Ela formou um eixo inclinado, e girou. O sistema que a compunha recriava o tempo. Girando, girando, sentia fora de si, apenas o vento. A dor se tornou unicamente física, ela já conseguia sorrir, e verdadeiramente. Mas toda euforia quando longa demais provoca náuseas. Vomitando monstros, Clarisse se anula ao chão.

8.11.04

Trinta

São dez horas da manhã. Como interpretar o seu amor? Interpretar é buscar sentido. Sim, isso é obvio, mas essencialmente importante. Clarisse não busca, ela gera tudo que se enraíza dentro. Uma violeta que parecia morta reabre. Havia uma música que Clarisse fez quando menina. Às vezes cantarolava, e resistia ao presente. Sonho bom, estar só e perceber que tudo perdeu sentido. Carme carmim. Tenta entender do motivo à rejeição. Mas o que são defeitos? É como se olhar ao espelho, aquilo que nos falta são os defeitos. Então tudo aquilo que repugnamos, é na verdade nossa carência. Admirar é se entregar. Há medo vendando a percepção do que pode ser belo. A sujeira é tão universal, e própria de cada um, mas há fealdade moral afastando a realidade. Os olhos são amigos ao amanhecer por possuir o brilho da entrega ao mistério do sono. A água apaga progressivamente esse brilho, juntamente com o peso do acordar para verdades embaladas. Deitada no chão lúcido, Clarisse voa para onde há apenas som e imagem. Sem dor, sem prazer. Aqui começa sua vida.

Vinte e Nove

Seu lábio inferior expele um líquido doce. É seu sangue, entre seus dentes há carne crua. Antropófaga. Se tivesse oportunidades comeria mais do mundo. Vivo e quente. Seu ser lhe provoca enjôo, por mais que seja uma minúscula fatia de seu lábio. Tem a boca encarnada como na noite em que deu pela primeira vez à um homem. Sem dor, sem máscaras. Sem coisa alguma, ainda suja.
Pensava melhor sobre o silêncio. Em cima dele, imaginava trepando com um fantasma. Dançou com leveza, toca o ar carregado de não-visão. Não ver não é presença de nada, não ver é impotência. Com lágrimas e embalo, Clarisse se deixa pesar dormência. As horas dormem e seu coração tem compasso 70. Para soluços, tranque a respiração. E ao se ver outra, Clarisse compreendeu o avesso.

4.10.04

Vinte e Oito

A mentira do dia foi escolhida. O amor. Clarisse houve os conselhos do espelho, Alice grita "anule-se". Igual perante o mundo, Clarisse é zero. Zero, constante, nulo, nada. Sem peso e significado. Ela quer coçar seu joelho, e coça. Clarisse se pertence. Presa em si mesmo, ela sente-se livre. Eu a entenderia perfeitamente, mas eu não sou livre. Dentro da sua mente um virgem canta. Oferece-lhe os lábios rosados, expõe seu peito nu. Clarisse o mata.