8.11.04

Trinta

São dez horas da manhã. Como interpretar o seu amor? Interpretar é buscar sentido. Sim, isso é obvio, mas essencialmente importante. Clarisse não busca, ela gera tudo que se enraíza dentro. Uma violeta que parecia morta reabre. Havia uma música que Clarisse fez quando menina. Às vezes cantarolava, e resistia ao presente. Sonho bom, estar só e perceber que tudo perdeu sentido. Carme carmim. Tenta entender do motivo à rejeição. Mas o que são defeitos? É como se olhar ao espelho, aquilo que nos falta são os defeitos. Então tudo aquilo que repugnamos, é na verdade nossa carência. Admirar é se entregar. Há medo vendando a percepção do que pode ser belo. A sujeira é tão universal, e própria de cada um, mas há fealdade moral afastando a realidade. Os olhos são amigos ao amanhecer por possuir o brilho da entrega ao mistério do sono. A água apaga progressivamente esse brilho, juntamente com o peso do acordar para verdades embaladas. Deitada no chão lúcido, Clarisse voa para onde há apenas som e imagem. Sem dor, sem prazer. Aqui começa sua vida.

Vinte e Nove

Seu lábio inferior expele um líquido doce. É seu sangue, entre seus dentes há carne crua. Antropófaga. Se tivesse oportunidades comeria mais do mundo. Vivo e quente. Seu ser lhe provoca enjôo, por mais que seja uma minúscula fatia de seu lábio. Tem a boca encarnada como na noite em que deu pela primeira vez à um homem. Sem dor, sem máscaras. Sem coisa alguma, ainda suja.
Pensava melhor sobre o silêncio. Em cima dele, imaginava trepando com um fantasma. Dançou com leveza, toca o ar carregado de não-visão. Não ver não é presença de nada, não ver é impotência. Com lágrimas e embalo, Clarisse se deixa pesar dormência. As horas dormem e seu coração tem compasso 70. Para soluços, tranque a respiração. E ao se ver outra, Clarisse compreendeu o avesso.