19.4.06

Quarenta e Quatro

Ao tocar ela sentiu medo, como as outras vezes. O medo a conservou inteira. E o que era parte, cicatrizou na memória. Pois ao tocar a outra, ela tocou também seu avesso.E ao tocar a outra, sentiu-se dentro de seu avesso. Assim sempre foi. Ao tocar a outra, tudo ganhava sentido cru. Algum sentido. As partes, tão pequenas – pensava ela. Clarisse sabe que é grande, também sabe que viver é uma mentira. Mas como medir o absoluto? De tão grande, seria o mesmo que nada, não cabe em linguagem, em expressão heróica. Dentro d’água pensou em flutuar, com milhares de pessoas ao redor, todas elas, e seus cheiros somente. Muitas fedem, Clarisse não se mexe. A água mexe, mas há um momento, imperceptível aos corações descuidados, em que tudo pára. Sim, é verdade. Clarisse já fez essa experiência por muitas vezes, e é por isso que ela está aqui, hoje, dentro do banheiro. Quando o tudo pára, é para o nada soprar. O nada sopra em silêncio, e os ouvidos de Clarisse estão prontos para quando a surdez chegar. É em seu reflexo, vasto de detalhes, que ela verá o absoluto calar. Nas pernas nota-se os vasos trincarem, é gargalhando que Clarisse pensa no desastre que é a vida humana. Não há tempo, quando se quer controlá-lo.

Quarenta e Três

É uma merda quando demora pra anoitecer. Merda pior quando demora para se encontrar n’algum lugar. Fazia tanta bagunça dentro de si, quase como o monstro que se refletia sempre que ela se olhava no escuro, naquele espelho que sempre tinha debaixo da cama. Ela não se via muito bem, procurava os olhos, duas bolas pretas, enormes, movimentando-se no branco onde aparecia um pouco de luz da rua. Fixava algum tempo, até ver o monstro. Clarisse conversava com esse monstro sempre que não tinha medo de si. Nas outras vezes, ela sorria amarelo, e dizia pra si mesma que estava com sono.
Ela não tinha aquele espelho, tão pouco era escuro. A tomada ficava do lado de fora, e a poeira dos vidros não permitiam Clarisse distinguir que hora do dia se passava, afinal. Luz sempre havia, tanto à noite como ao dia. Isso irrita qualquer um, não há extrema escuridão e solidão nessa porra de cidade? O ralo se entende bem com isso, Clarisse meteu a fuça bem perto, não cheiro, mas baratas se mexendo. Quase-silêncio... incrível! Escuras, sujas... Clarisse retoma feto e estende a mão às suas irmãs. "Quem tu vês na pele alheia? É mentira que um dia criaste identidade, as putas não criam nada, ouves bem? As putas não criam."
Somos centavos, não dá pra rasgar, limpar o cú... de quando em mais, aspirar pelo nariz e coçar as hemorróidas.
Era pra ausentar o sentido, mas Clarisse é pele só. Foi pra lua, e tocou o silêncio, o absoluto. Pensou que não ia resistir, talvez decompor-se, tornar-se gás. Matar alguém para levar junto ao eterno. Se dissolver inconsciente, não ver, não ouvir, não cheirar, não doer, não rir, não amar, não se dar, não tomar, não ser.
Não ser NADA.