29.3.04

Treze

Por que a vida insiste em perdurar em momentos de “quase-morte”? Será o nada, o Deus, o silêncio forçado que inquieta não só a Clarisse, mas a todos que abrigam o vazio em seus peitos? Clarisse ouve sua mãe chamando, lhe dizendo que precisa abrir os olhos ao falar com as pessoas. Os olhos de Clarisse estão cada vez mais serrados, expressando nervosismo. Começa a apertar seus seios com força, depois acaricia seus braços. A cabeça apóia todas perguntas sobre os joelhos. Sem respostas, elas não surgem limpas. Com um sabão barato lava seu monte de Vênus e ouve o vento de agosto. Ontem ela caminhava pela rua, buscando paz e calor, hoje ela busca o mesmo em outro lugar. O corpo adormeceu. Curar a alma através dos sentidos. Repetir, em busca do nada. Repetir e reinventar combinam? Sua pele sentia o gosto azedo da reinvenção. Cada dor que sentia era acompanhada posteriormente por alegria e calma. Ela já sabia de tudo que estava para acontecer.

Doze

Vermes rastejantes, os quais não sabia denominar, beijavam os pés de Clarisse com sua gosmenta frieza. Ela cheira entre os cotovelos, seu corpo fede. Seu próprio odor é sujo, mas não feio. Ela nunca havia sentido esse perfume com extremo prazer, olha para cima e seus olhos a enganam. As gotas voltam para sua origem, a chuveiro elétrico pisca no cubo com iluminação fraca. Clarisse fecha os olhos, sonha junto a sua paz e lágrimas. No colo da tristeza ela encontra seu estado bruto, naturalmente bela e sem peso. Confundisse com o musgo do canto, Clarisse mendiga por umidade e escuridão. Usa seu sentido favorito para triunfar perante seu amor. Com o tato ela sente cada cm3 de ar que a envolve. Sua pele toca suas fantasias, a água escorre ao contrário. Clarisse está feliz, os suspiros e o sorriso pincelado no seu alvo rosto revelam isso. A lembrança do vento canta em seus pensamentos, Clarisse se transporta para junto dessas lembranças. Vive de cenas recriadas, inventadas, repetidas. Há brotos no vaso com terra seca junto à janela.

27.3.04

Onze

Tantas vezes se está a beira da morte. É preciso confessar que é instante de extrema beleza, pois é uma bolha transparente envolvida de veneno cristalino. A morte e seus feitiços, a “quase-morte” dá uma sensação de nascer de novo. Sem ressurreição, pois cada “quase-morte” equivale a um fim, e daí a diante um novo começo (ou ao menos uma ilusão deste). Clarisse molha seus calcanhares, seus pulsos, o peito e só então fecha os olhos e recebe o cair da água. Ainda que todo vazio dê sentido a sua sinfonia desafinada, ela continua a apreciar alegrias infantis. Banhos de chuva, sorvete de pistache com muita cobertura de chocolate, perfume de jasmim, sol de janeiro e ventos de agosto. Nas suas lembranças ela tenta encontrar algo que se perdeu, algo que matou toda sua esperança. Voltando ao passado acredita poder renascer, Clarisse ainda sonha.
E se sonha ainda vive. O vazio que tanto adora é superficial, ela almeja o impossível, e isso é um traço que ela traz de sua infância. A maioria de suas lembranças não aconteceram, apenas existem em sua memória. Ela precisa de algo para se apoiar, então se apóia no nada das suas mentiras.
Mas serão tão falsas suas lembranças?
No canto cheirando a limo ela se acolhe como em braços maternos.

22.3.04

Dez

Recapitulando. Tudo que Clarisse considera como restos são benfeitorias do nada. A insignificância dá ordem ao caos da sordidez da vida. Sua poesia “restoriana” a fazia sentir prazer em sua engrenagem diária. Comer, se prostituir, pagar contas e dar bom dia ao dono da padaria faziam parte dessa engrenagem, do seu lado máquina da sociedade. Do resto, procurava se refugiar em seu já comentado palácio. Clarisse é artista da vida, musa do cotidiano contemporâneo, filha de maria. Puxou a descarga, sentiu-se descer naquele redemoinho. Deixou-se levar pela água, pelo som da engrenagem que segue além da janela. Desejou o contrário de todo aquele instante, desejou ser lavada, desejou tocar o avesso do nada. Ainda ficaram algumas bostas, esperou a caixa encher. Puxou novamente a descarga, e dessa vez viu a água girar pelo lado inverso do habitual. Não deu muita importância, ligou o chuveiro. Sentia-se calma.

Nove

A inquietação da sua alma acelera seus pensamentos. O irreal se mistura com sonhos e o passado acontecido de fato. Ela ainda lembra detalhadamente de seu corte, e das vezes que esteve tão próxima da morte. Ela está nua. Tenta chegar próximo da lâmpada que tenta berrar por claridade para ver sua pele. Pintas, manchas, sujeira e o perfume do nada. Clarisse muitas vezes tentou entender o que era o fim. Alguém (a qual lhe foge da memória) lhe dizia que a vida era feita de ciclos, e que um dia tudo voltaria a se repetir. Achava aquilo absurdo, pois até então sua vida insignificante era inválida demais para se repetir. Qual é a repetição do nada? Deixou-se cegar por alguns instantes de tanto fixar a íris na lâmpada elétrica. A dor que levava no peito só era aliviada quando conseguia não pensar. Tentando manter-se calma. Não quer desespero. Um dia alguém lhe identificou depressiva, ela não entendia o que era isso, apenas sentia-se bem da forma como estava. A dor já havia se tornado companheira, e sua grande amiga. Chorar era perder a calma. Sozinha, Clarisse dizia a si mesma que lágrimas somente em momentos de prazer, lágrimas e dor são restos.

Oito

No cubo onde se encontrava, tinha tudo que mais adorava, e de que considerava essencial para sua existência. Violetas secavam na micro janela por onde uma gota de sol insistia em entrar, o mofo inevitavelmente tomava conta das paredes com raros azulejos. Mas não era disso que Clarisse precisava. Não era o cheiro de musgo e paredes coloridas por teias e excrementos (dela e) de insetos que enalteciam em poesia, mas suas velhas armas para o suicídio. Tantas tentativas de uma vez por todas ser o nada. E seu ridículo lado humano a fazia perder as forças. Mas desde muito ela vem se preparando, se fortalecendo em sua própria insignificância para realizar seu maior desejo. Os olhos estão tranqüilos, mas ela se sente nervosa. Será o avesso que se manifesta atrás das manchas sujas do espelho? Não... ela precisa tocar. Ela quer sentir o medo, lágrimas molham o seu peito.

Sete

Seu palácio podia ser visto através do espelho. Quando criança ela os temia, chegava a ter pesadelos com imagens suas, refletidas de forma horrorosa por diversos e horripilantes espelhos. Todos traziam sujeira em sua borda, e no centro uma luz nítida dava destaque aos olhos. O medo a encantou com o passar dos dias, e naquele reflexo, onde via terror, encontrou abrigo e adoração. Nada de narcisismo, mas encontrou um desconhecido que a encantava: seu olhar. Ela nunca tinha certeza de como seria seu olhar cada vez que se deparasse com seu reflexo. E essa espreita a inquietava, levando sempre consigo um espelho. Nada de vaidade, como foi dito, mas apenas a excitação pelo desconhecido.
Demorou um pouco até puxar a descarga, os cheiros ainda se misturavam. Foi novamente para frente do espelho. Queria não pensar em nada, esquecera o trabalho, o leite no fogão, as contas atrasadas, só queria a luz raquítica e fedor de merda como sordidez naquele momento, para ela aquilo tinha grande valia dentro dela. Isso e seu vazio. Seus olhos traziam um silêncio ao mesmo tempo angustiante e anestesiante. Isso hoje.

21.3.04

Seis

Seu professor da escola um dia lhe falou sobre niilismo. Gostou do que ouviu, e sentiu que se desprender de verdades lhe deixaria leve. E melhor que isso, a ignorância e a indiferença lhe trariam o nada, deixando-a mais perto do seu amor. Ela limpava primeiro o mijo misturado com a porra, depois de úmido o papel passava em seu ânus para tirar a merda mais facilmente. Não se importava com doenças, mas não gostava quando essas aconteciam. Ainda ficou sentada, vendo a luz entrar e tentar tocar os cantos mudos. Olhou suas mãos pardas, sujas. Acariciou novamente sua cicatriz, e suspirou num belo sorriso.

Cinco

A luz cinza que entrava como fugitiva dentro do banheiro, se enaltecia com o cheiro de merda, gozo e mijo. Enjoada e excitada era como se sentia Clarisse cada dia que executava seu ritual. Não via sentido algum para o que ela fazia, apenas sentia prazer naquele vazio posterior. Mas vamos nos centrar no ato da masturbação. Tentava não pensar em nada. Mas o tudo sempre a atormentava como uma sombra. Então resolvia receber o tudo. Captava com a maior intensidade todos sons, cheiros, e fechava os olhos para se entregar ao infinito, até chegar ao instante em que tudo perde o sentido. Ela via no gozo a forma mais perfeita do nada, por isso preferia se masturbar, pois junto de outro corpo não gozaria do vazio exterior. Para ela o nada precisava ser completo. O vazio deve ocupar dentro e fora.

Quatro

Kundera faz uma longa reflexão a respeito do kitsch em um dos seus livros. Agora por exemplo, porque eu não disse simplesmente que ela iria defecar, ao invés de sentar minha personagem em um vaso sanitário?
Kundera citou dos nossos pudores, que foram criados por nós desde que Adão foi expulso do paraíso. E definia o kitsch como “estação intermediária entre o ser e o esquecimento” (epitáfios cotidianos).
Assim como a merda é negada por nós, por ser algo fedido e nojento, assim negamos o que nos parece ofensivo e vulgar. Isso é o Kitsch.
Mas tudo isso é estética, moral. Clarisse se masturbava cada vez que defecava. O seu excremento, o seu fedor, era algo que para ela, representava a transpiração de tudo que a insignificância pode nos dar. Viver para ela, não possuía diferenças, pólos. Viver era nada, e isso, como já disse, a excitava.

Três

Do lado esquerdo do rosto, está gravada a lembrança de um domingo com ar acre. O ar com que toca a cicatriz é doce e nostálgico. Perto do seu olho, a sensação de escuridão que a tomou quando ocorreu o corte. Ela imaginava viver no infinito para sempre. Perdida no que mais ama. No nada, saberia que seria livre, leve. Não teria mais o peso de olhar nos olhos das pessoas que mentem para ela.
Clarisse suspira frente ao espelho, lembra-se de um livro que lera quando pequena, e que a marcou bastante. A história de uma menina que conseguia passar para o outro lado do espelho, e ver (e viver) todas as coisas ao contrário. Ah, como ela desejava saber como é o nada ao contrário.
Agora olha novamente a cicatriz. Vê como sua pele se fortaleceu depois de curada a ferida. Vê como seus olhos escureceram desde o amanhecer. Lava mais uma vez o rosto, e senta-se no sanitário.

Dois

Quando as idéias sobre o nada começam a fazer sentido, nos sentimos com um enorme vazio no peito. Clarisse tinha quatorze anos quando começou a sentir os sentidos do vazio. Não tinha a extrema noção do que sentia, mas acreditava ser guiada pela intuição. Mas sentir o nada é algo que a excitava de forma, digamos, mística. O nada a elevava, e esse nada chamava de Deus.
È preciso compreender que desde que nascemos, nós ocidentais, somos criados com a ideologia do perdão. Num país, onde as religiões nunca foram levadas a sério, acabamos sempre por perdoar e seguidamente sentir compaixão daquilo que nos ofende, ou como muitos dizem, “nos fazem mal”.
Clarisse ainda lembra da sua mãe, de como era bondosa. A passividade se tornava agressiva a ela, pois ser bondosa, na terra de Clarisse, significava ser submissa.
O engraçado que sempre que queremos contar a história de alguém, precisamos falar sobre a mãe. Juro que queria evitar que isso ocorresse, mas a mãe de Clarisse é fundamental para chegarmos a prisão que ela construiu dentro do espelho. Pois foi no vazio do olhar de sua mãe, que veio a sua maior herança: a tristeza e o nada do mundo.

Um

Parecem dois amigos. A cumplicidade revelada no olhar, mas somente quando escova os dentes. De manhã, ainda com os primeiros raios tudo possui leveza. Com o passar das horas o olhar amigo, suave, vai tomando novas cores, sombras vão pousando sobre sua face.
É segunda-feira, o reflexo capturou sua imagem. Fica observando a outra, que não é nada além do que o contrário. Mas será? Tudo será tão avesso quanto suponho?
A dor corta, ainda é segunda-feira. Hoje decidiu não ir trabalhar. Resolveu viver a outra que há atrás do espelho.