26.5.04

Dezessete

A alegria. Clarisse aluna brilhante. Tudo se tornou falso e pesado. Com facilidade ela se cansa, desiste do nada e resolve sair de dentro do banheiro. Sente-se aliviada com a decisão. Alívio é superficial como a alegria. Ela sempre se lembra desse ensinamento materno. Se tivesse em mãos um dicionário procuraria o significado de peso, chega de metafísica. Ela não tem força, alegrou-se antes do tempo. Evapora, e em nebulosa tenta deslizar entre as frestas da porta. Não há alucinógeno, não há delírio. A vida recupera contornos retos, e contraste frio. Cansada, Clarisse senta na privada e inspira simetria. E se firmasse seus ideais em objetos objetivos? – pensa ela. Quem seria Clarisse agora? O nada? Certamente não, pois ao menos receberia o título honorário de humana sobre o trono. E o resto? Ela se inventaria, ou algum terceiro a reinventaria? Talvez ainda esse terceiro a parisse, e a adoraria. Clarisse seria alvo de paixões, de moral, de objetivos, de perspectivas, velhice e morte. Meios e fins. Lógica aristotélica. Sim ou não. Além disso, precisaria acreditar no bem, no perdão, na verdade. Talvez nem precisasse pensar na complexidade do simples. A ignorância nos guarda. Longo bocejo – ela se perdeu nos seus pensamentos. Enquanto tenta lembrar do que pensava olha os pêlos que crescem na volta do seio.

Dezesseis

O vapor umedece o colo asmático de Clarisse. Ela inspira cheiro de sábados da infância. A memória re-traz tudo, os sons, a umidade afinando roncos no peito felino. Alice lhe traiu. Já não há mais caminhos. Ao voltar da escola procurava por tudo, estupros, sonhos, olhares, roubos, revoltas, invenções. Sair pela janela ou arrombar a porta? Na sua procura encontrava o nada. O vazio lhe fisgou, com o mesmo olhar de um rapaz apaixonado, rompeu o hímen da vida, gozou em jato sua insignificância. Adaptar-se a umidade é aceitar a condição de mofo. Atemporal as invenções tecnológicas está o medo. Sem memória e escrúpulos, o ser perde sua importância moral. Clarisse se lembra dos caminhos vacilantes, das tantas vezes que hesitou o perigo. Correr sem saber ao certo do que foge. E será que foge? O apoio de todo ser está sobre os joelhos. Respirar dói.

8.5.04

Quinze

O banheiro possuía fumaças, sopros de calor. Desligou o chuveiro e se deixou escorrer por mais alguns instantes. A maneira de tocar o ar com as pálpebras, os pêlos constantemente arrepiados, prontos para todas sensações. O corpo sempre a espreita do que não há mais de acontecer. Como um perfume que memoriza sentimentos, o sorriso feliz de quem deita e descansa a alma cansada. Um emaranhado de frases sem sentido, assim é Clarisse, bela e suja ao alvorecer.
Primeiramente se olhou no espelho, nos seus olhos. Castanhos, tristes, nebulosos. Galáxias se escondiam naquele olhar, e ela queria apenas ser engolida pelo buraco negro. Seu calor que a secava, a espontânea confusão de não saber o que fazer, o que sentir, o que ser. Ela sempre quis o nada, sempre se achou tão certa disso, tão certa do nada. Agora ela já não mais sabia, tudo era pesado, insignificante. Sente-se bem, excitada e feliz. O corpo, sua alma, são o nada. Ela se toca com desejo, e ainda com toda sua confusão interpreta a si mesma. O espelho não sabe mais quem está refletindo.

Quatorze

Ser prostituta é um sonho que toda menina (e mulher) já alimentou em ser. Ver o corpo nu, branco e marcado ser banhado aguçava esse desejo de ser objeto, ser manuseada, tocada, adorada, mesmo que de olhos fechados. Sentir o jorro frio, e notas contentando seu corpo. Não ser nada mais do que um simples nada. Alguém sem valor físico e psicológico. Vazio e vazio. O nada tinha beijos e toques frios.
Não sabia mais da existência do tempo, o espaço ela ainda notava, não porque visse a luz, mas por sentir as arestas lhe comprimindo. Em busca das portas, certas ou não, cabíveis ou não; ela simplesmente buscava uma porta, caso não encontrasse, acredito que não faria tanta diferença assim, o vazio perfumava todos instantes e ela nem sempre notava. Havia aqueles momentos em que gozava da existência (e na existência), e isso a deixava leve, e “entediantemente” superficial, que tudo voltava a pesar. E sem pesar nenhum ela se velava, sorria suave, quase casto, com suas mortes. A menina Clarisse envelhecia, mas o tempo não passava, apenas os móveis trocavam de lugar, e as paredes, suas sombras.