13.12.04

Trinta e Dois

"O melhor que eu puder". Os sons perderam o significado sujo. "Mas o melhor nunca é suficiente". Os superlativos nunca se bastam, inclusive o pior. Apenas quando se está só, se pode ser superlativo. Só, se é o que se quer. Inclusive assassino. Nada mais assusta, Clarisse sente frio, não na pele, mas em alguma parte dentro dela, não sabe se são seus nervos que tremem, ou alguma parte da região do tórax. Seu planeta começa perder a órbita, cai sem desvio, e apenas aguarda o momento em que irá se chocar com algum objeto não identificado (por ela). Longe de querer pensar em adjetivos, Clarisse apenas existe, nada mais. Ela chega no lugar onde sempre quis estar (e sempre esteve), no vazio.

Trinta e Um

Nunca entendeu direito de onde provém a luz, qual sua composição e sua fórmula. Energia. Seus seios começam a aumentar, o corpo se prepara para envenenar um novo ser. Mas pouco importa, o presente não é de fato, lembranças são construções de imagens. Em cada estrela falecida, o mesmo desejo implorado em tanta outras vezes. Na dor sentia-se viva, pois sentia-se profundamente, conhecia cada canto obscurecido. Clarisse foca o olhar para o centro de tudo, e vê apenas um ponto. O movimento transformara-se numa lentidão absurda, quase estática. Ela formou um eixo inclinado, e girou. O sistema que a compunha recriava o tempo. Girando, girando, sentia fora de si, apenas o vento. A dor se tornou unicamente física, ela já conseguia sorrir, e verdadeiramente. Mas toda euforia quando longa demais provoca náuseas. Vomitando monstros, Clarisse se anula ao chão.

8.11.04

Trinta

São dez horas da manhã. Como interpretar o seu amor? Interpretar é buscar sentido. Sim, isso é obvio, mas essencialmente importante. Clarisse não busca, ela gera tudo que se enraíza dentro. Uma violeta que parecia morta reabre. Havia uma música que Clarisse fez quando menina. Às vezes cantarolava, e resistia ao presente. Sonho bom, estar só e perceber que tudo perdeu sentido. Carme carmim. Tenta entender do motivo à rejeição. Mas o que são defeitos? É como se olhar ao espelho, aquilo que nos falta são os defeitos. Então tudo aquilo que repugnamos, é na verdade nossa carência. Admirar é se entregar. Há medo vendando a percepção do que pode ser belo. A sujeira é tão universal, e própria de cada um, mas há fealdade moral afastando a realidade. Os olhos são amigos ao amanhecer por possuir o brilho da entrega ao mistério do sono. A água apaga progressivamente esse brilho, juntamente com o peso do acordar para verdades embaladas. Deitada no chão lúcido, Clarisse voa para onde há apenas som e imagem. Sem dor, sem prazer. Aqui começa sua vida.

Vinte e Nove

Seu lábio inferior expele um líquido doce. É seu sangue, entre seus dentes há carne crua. Antropófaga. Se tivesse oportunidades comeria mais do mundo. Vivo e quente. Seu ser lhe provoca enjôo, por mais que seja uma minúscula fatia de seu lábio. Tem a boca encarnada como na noite em que deu pela primeira vez à um homem. Sem dor, sem máscaras. Sem coisa alguma, ainda suja.
Pensava melhor sobre o silêncio. Em cima dele, imaginava trepando com um fantasma. Dançou com leveza, toca o ar carregado de não-visão. Não ver não é presença de nada, não ver é impotência. Com lágrimas e embalo, Clarisse se deixa pesar dormência. As horas dormem e seu coração tem compasso 70. Para soluços, tranque a respiração. E ao se ver outra, Clarisse compreendeu o avesso.

4.10.04

Vinte e Oito

A mentira do dia foi escolhida. O amor. Clarisse houve os conselhos do espelho, Alice grita "anule-se". Igual perante o mundo, Clarisse é zero. Zero, constante, nulo, nada. Sem peso e significado. Ela quer coçar seu joelho, e coça. Clarisse se pertence. Presa em si mesmo, ela sente-se livre. Eu a entenderia perfeitamente, mas eu não sou livre. Dentro da sua mente um virgem canta. Oferece-lhe os lábios rosados, expõe seu peito nu. Clarisse o mata.

Vinte e Sete

"Vamos Clarisse, ainda há sacrifícios a oferecer!" Não sei ao certo se é o ar, ou a estrela de quatro pontas que desenha o ralo, que a provoca náuseas. Cospe, cospe, e agora tem sede. Ela vai morrer. Já sabe disso, desde que nasceu. Hoje ela tem medo dessa verdade, e não consegue mentir. Tantas mentiras para se acreditar, porque foi logo escolher o nada. Ao menos escolhesse acreditar na felicidade, talvez seria um bom começo. A aranha segue caminhando pelas suas costas, beijando seus poros. Deseja amar esse ser, mas Clarisse é tão frágil quanto ela, e precisa tanto desse carinho, ela se masturba e oferece sua porra à sua amante, a qual bebe e despede-se.

Vinte e Seis

Se fosses Deus, quem matarias? Um bom que sofre, ou um mal que goza? O egoísmo é covarde, luxuoso e impotente. O primeiro tiro seria na boca, para calar tanta estupidez. Clarisse sempre quis ter uma banheira, igual a da sua vó. Só não roubou por não ter onde esconder (o velho problema das coisas grandes). Quando menina adorava ficar horas de molho na frágil banheira, vendo as aranhas caminharem pelo seu corpo branco, ainda sem manchas. Ela é quem? O bom que sofre, ou o mal que goza? Havia árvores se escondendo atrás da janela, gostava das manchas as quais o sol cobria suas pernas. Uma vez a aranha a envolveu na teia e penetrou sua vagina. Nunca soube se isso era o certo, a menina apenas gozava. O sol cobre, mas sabe-se que por debaixo da pele não há luz. Existiam milhares de cascas envolvendo Clarisse. Talvez sua polpa nunca corresse o risco de escurecer, pois ela já é negra.

Vinte e Cinco

Assim aprendo. Clarisse nunca ajudou. Nunca lhe pediram ajuda. Sua opinião nunca contou verdadeiramente. Silêncio da luz. A dor longe, além do cinismo e da arrogância. Há poder contra isso? Há ignorância, talvez ainda a estupidez. Mediocridade. Bom seria estar no colo do nada, de onde tudo surge. Os heróis confortam apenas o pânico alheio. Às vezes são imagens que se formam, Clarisse nota a velocidade quando o tempo está contra ela. Ventocidade. Somente contra o vento ela desliza. À favor, o tempo prolonga. As curvas e o rastro das árvores. Contemplação. Sim, ela está certa, são imagens, e do outro lado. Quantos lados são refletidos? Clarisse é reflexo. Sim, sim, ela é o espelho. O que fazer agora com a liberdade dessa informação?

29.7.04

Vinte e Quatro

Um tesouro num fundo falso no assoalho da casa de sua avó. Uma de suas primas se revolta com a infância pobre que passou e pelo irmão que esteve doente e ficou paraplégico. Tanta riqueza vale a cura de males e a busca de conforto? A prima berra, chamando-a de mesquinha. A avó paralisada, esconde garfos de prata no cós da saia. Clarisse pensa pela sua vó, pensa no que é justo. É mais um sonho. Há mundos através do espelho? Por que a avó nunca disse nada sobre o tesouro? Os perversos sempre mereceram proteção e honrarias, para Clarisse. A gosma salivar seca no meio do espelho. Clarisse sempre acreditou que o universo paralelo ao reflexo, fosse oposto ao que ela vive. Haveriam duas Clarisses, quer dizer, uma Clarisse e um Essiralc. E se realmente tudo não passar de um reflexo sujo? Acreditava que Essiralc levaria um vida repetitiva, igual a dela, somente com o significado oposto. Afinal, para que no mundo serviriam duas pessoas idolatrarem o nada? Essiralc, ao contrário da tristeza infinita com que Clarisse encara a vida, aceitaria a dor como um presente. Segundo a matemática, o oposto do positivo é o negativo, no caso de uma parábola com o arco voltado para baixo, o seu oposto seria o arco voltado para cima. Arco voltado para cima era Essiralc, que sorria a cada choro de Clarisse. O grito é nulo, e ambos gritam. E quem é reflexo? Clarisse saliva lembrando do gosto de comer usando talheres de prata. Haviam muitas cobertas em seu sonho. Cobertas cheirando a gozo velho. Lá fora chovia. Um pedaço de limo cai do forro sobre seu colo. Eu procuro saber o que sustenta Clarisse. Seu ar de santa satânica me indica para sua fé, mas Clarisse acolhe espelhos dentro dela, e isso constrói labirintos que afugentam respostas.

Vinte e Três

As cores são jogos de luz. As cores formam imagens, tornam a vida alegre e sombria. As cores despertam sensações e curam doenças. As cores são jogos de luz, jogos são ilusões. Perceber é uma mentira. Doce e dolorosa mentira. Um bom emprego, um bom companheiro, uma boa amiga, um bom par de pernas, Clarisse tem todos os materiais para a vida feliz. Destruir é rápido. Ruínas são o nada? Ainda haverão herdeiros depois de tudo acabado. O podre irá persistir, e o divino abençoará a dor com poesia. Clarisse é devorada entre suas pernas, o vento suga o caldo mucoso e salgado. Nas asas do sopro frio, germes serão espalhados, e sucumbidos pela goela da mãe terra, que os abrigará. Somente a terra abriga os restos. No fim, só a terra nos ama podres. Justificar-se é buscar fé em si mesmo. Admitir o desejo de ser comida é a forma de louvor à fraqueza, feita por ela. Quais intenções não são puras e putas?

Vinte e Dois

Uma escritora vulgar, escreveu num desses papéis que se perdem, que o sono é desculpa do vazio que cansa. Quando não há mais lágrimas, nem mais desespero, dorme-se, acreditando que o nascer do sol nos trará o supremo bem junto com seus primeiros raios. Acredita-se tanto no poder do novo dia, talvez por ser novo, talvez por a esperança ser o único voto ainda existente com relação à felicidade. Os dias nascem nublados, e o nada persiste. Há vazio no tudo para se fazer. Eu queria tanto que Clarisse se permitisse, gostaria tanto de saber para o quê, ela deve se permitir. Bom-dias, boa-noites, sinto-muitos, por-favores, e toda a maldita linguagem, tudo isso cansa, e isso é tomado por vazio. Em que dias, em que mundos é possível dizer sim e não para os Sins e Nãos vazios? Por onde se começa limpar, pelo mais sujo, ou tirando o pó da superfície sem deixar de olhar o céu? Clarisse inventa mundos para si, confesso que a invejo, tão cria de si mesma. Tão frágil e seca, encontrou o prazer em suas mãos. O verdadeiro está cego, e ela ri ao lembrar disso. Nem todo dia se chora, mas os pulsos sangram à cada fuga, à cada "depois-penso-nisso". E não se pensa, não se dorme. E a morte chega, e se descobre que nunca se foi livre. É sempre noite nos olhos semi-abertos de Clarisse. Ela se suporta, sabe que seu reflexo é uma imagem torta, é mais um risco abstrato procurando interpretação. Há poesia, há objetivismo, há pobreza, há compaixão, há cuspe escorrendo pelo espelho, há auto-mutilação, há cansaço.

Vinte e Um

Uma idéia brilhante, viver cansa. Clarisse quer matar sonhos. Ela tem medo, falta-lhe vontade. Triste. Nasceu numa cidade de nome alegre. Ela morre todo dia. Perdendo a castidade. A luz azul transforma o amarelo em ouro. No escuro se tem traços fiéis do toque. Eu toco Clarisse que corre para não sei onde e grita doce à dor. Chato (piolhos vermes) existir. E persiste, sem ajuda. Ela chora, foge dos reflexos e das horas e das luzes. A luz mente. Luz demais também cega. Eu sou estúpida ou Clarice realmente cospe no mundo? Amanhã é quase hoje. O nada importa, nada mais importa, importa. Lágrimas lambem as costas da mão direita. O sono jaz sobre seu corpo.

26.6.04

Vinte

É segunda-feira, só disso se lembra. O que nesse mundo faz sentido? Ela tem o peso do mundo. Eu também o tenho. Por isso olho Clarisse, e a sinto, e a amo. E isso importa? Clarisse vive num mundo onde mal percebe, mas que é preenchido pelo vazio. Será ela, cria do nada? Ou ela nada criou? Do nada deus gerou o universo. Clarice quer do universo gerar o nada. O contrário de deus é Mefisto, ou ignorância da sua existência? Destruir é rápido. Clarice nunca viu o mar, o campo, o verde, o anil, pontos pratas no escuro. Sempre viu melhor de olhos fechados. Saberia entender logicamente o cotidiano, se tudo fosse simétrico. A pobreza é subjetiva. Terá ouvido a chuva? A umidade demora a baixar. Todo ar é denso. As unhas dos pés estão cumpridas e sujas, seu dedo mínimo do pé esquerdo está com frieira. Cobre-se do frio com a toalha úmida. Se soubesse da sua beleza não seria tão magnífica. Retrato perfeito da contemporaneidade. Seus olhos vermelhos quase sangram, a cabeça acolhe-se no colo dos seus próprios joelhos.

Dezenove

E gerar-se.Quem plantou as violetas? Todas suas criações morreram. Ou assassinadas e depois devoradas pela mãe. Haviam bonecas. Clarisse pedia bonecos grandes de presente para poder se masturbar.”Acho que veio minha menstruação”. Seu hímen rompeu com a mão de uma boneca. L-I-B-E-R-D-A-D-E – Clarisse soletrava. Letra soltas com péssima consonância. Acima de tudo sem significado real. Ela gostava das letras dessa palavra. Muitas vezes acreditou ser livre presa ao nada. Mas até que descobriu, que ambos, ainda não encontrara. Boneco Maneco. O lençol manchado de sangue podre e sereno. Como uma velha brincadeira, Clarisse nina seus seios, alvos e frágeis. Mais calejados que qualquer outra parte. Com esse mesmo peito, Clarisse topou o vento agonizante, geladas vezes. Nu e perplexo, assim, até hoje, se porta o colo asmático de Clarisse. A prisão desse reflexo ainda guarda muitos monstros, prestes a serem exorcizados (ou reinventados). Do eco do seu útero, muitos filhos serão criados.

Dezoito

Cega em seus sentidos. Hoje não há mais saberes, e como sempre não há certezas, nem mesmo a certeza do morrer. O silêncio do não-ser, o sopro invisível que aviva a derme. Clarisse não cogita amanhã, mal lembra do agora, ela apenas sente as horas se arrastarem. Em seu cubo, em seus traços fortes, em tudo que lhe falta, Clarisse, inspira, reconhece-se, expira, abre a porta chega em casa. Longe, longe, também demorado, a cada passo, mais o teto se enche de sombras. A queda vem para trazer conforto ao coração de Clarice. Com os sentidos cegos ela mama no colo materno, funga o peito com força e chupa seu seio a procura de laços consigo mesma. Ela quer sentir seu ventre, e recebe como resposta o ronco de suas tripas. Encurvada, a-feto. Levanta-se e vai até a caixa do armário. Reencontra os rotineiros comprimidos, procura algo de cabo longo. Ela precisa sentir o ventre. Com a escova dental ela se esforça, até que nota sua secura. Seu útero que nada gera, e felizmente nada gerará. Vazia, Clarice quer voltar pra dentro do seu nada.

26.5.04

Dezessete

A alegria. Clarisse aluna brilhante. Tudo se tornou falso e pesado. Com facilidade ela se cansa, desiste do nada e resolve sair de dentro do banheiro. Sente-se aliviada com a decisão. Alívio é superficial como a alegria. Ela sempre se lembra desse ensinamento materno. Se tivesse em mãos um dicionário procuraria o significado de peso, chega de metafísica. Ela não tem força, alegrou-se antes do tempo. Evapora, e em nebulosa tenta deslizar entre as frestas da porta. Não há alucinógeno, não há delírio. A vida recupera contornos retos, e contraste frio. Cansada, Clarisse senta na privada e inspira simetria. E se firmasse seus ideais em objetos objetivos? – pensa ela. Quem seria Clarisse agora? O nada? Certamente não, pois ao menos receberia o título honorário de humana sobre o trono. E o resto? Ela se inventaria, ou algum terceiro a reinventaria? Talvez ainda esse terceiro a parisse, e a adoraria. Clarisse seria alvo de paixões, de moral, de objetivos, de perspectivas, velhice e morte. Meios e fins. Lógica aristotélica. Sim ou não. Além disso, precisaria acreditar no bem, no perdão, na verdade. Talvez nem precisasse pensar na complexidade do simples. A ignorância nos guarda. Longo bocejo – ela se perdeu nos seus pensamentos. Enquanto tenta lembrar do que pensava olha os pêlos que crescem na volta do seio.

Dezesseis

O vapor umedece o colo asmático de Clarisse. Ela inspira cheiro de sábados da infância. A memória re-traz tudo, os sons, a umidade afinando roncos no peito felino. Alice lhe traiu. Já não há mais caminhos. Ao voltar da escola procurava por tudo, estupros, sonhos, olhares, roubos, revoltas, invenções. Sair pela janela ou arrombar a porta? Na sua procura encontrava o nada. O vazio lhe fisgou, com o mesmo olhar de um rapaz apaixonado, rompeu o hímen da vida, gozou em jato sua insignificância. Adaptar-se a umidade é aceitar a condição de mofo. Atemporal as invenções tecnológicas está o medo. Sem memória e escrúpulos, o ser perde sua importância moral. Clarisse se lembra dos caminhos vacilantes, das tantas vezes que hesitou o perigo. Correr sem saber ao certo do que foge. E será que foge? O apoio de todo ser está sobre os joelhos. Respirar dói.

8.5.04

Quinze

O banheiro possuía fumaças, sopros de calor. Desligou o chuveiro e se deixou escorrer por mais alguns instantes. A maneira de tocar o ar com as pálpebras, os pêlos constantemente arrepiados, prontos para todas sensações. O corpo sempre a espreita do que não há mais de acontecer. Como um perfume que memoriza sentimentos, o sorriso feliz de quem deita e descansa a alma cansada. Um emaranhado de frases sem sentido, assim é Clarisse, bela e suja ao alvorecer.
Primeiramente se olhou no espelho, nos seus olhos. Castanhos, tristes, nebulosos. Galáxias se escondiam naquele olhar, e ela queria apenas ser engolida pelo buraco negro. Seu calor que a secava, a espontânea confusão de não saber o que fazer, o que sentir, o que ser. Ela sempre quis o nada, sempre se achou tão certa disso, tão certa do nada. Agora ela já não mais sabia, tudo era pesado, insignificante. Sente-se bem, excitada e feliz. O corpo, sua alma, são o nada. Ela se toca com desejo, e ainda com toda sua confusão interpreta a si mesma. O espelho não sabe mais quem está refletindo.

Quatorze

Ser prostituta é um sonho que toda menina (e mulher) já alimentou em ser. Ver o corpo nu, branco e marcado ser banhado aguçava esse desejo de ser objeto, ser manuseada, tocada, adorada, mesmo que de olhos fechados. Sentir o jorro frio, e notas contentando seu corpo. Não ser nada mais do que um simples nada. Alguém sem valor físico e psicológico. Vazio e vazio. O nada tinha beijos e toques frios.
Não sabia mais da existência do tempo, o espaço ela ainda notava, não porque visse a luz, mas por sentir as arestas lhe comprimindo. Em busca das portas, certas ou não, cabíveis ou não; ela simplesmente buscava uma porta, caso não encontrasse, acredito que não faria tanta diferença assim, o vazio perfumava todos instantes e ela nem sempre notava. Havia aqueles momentos em que gozava da existência (e na existência), e isso a deixava leve, e “entediantemente” superficial, que tudo voltava a pesar. E sem pesar nenhum ela se velava, sorria suave, quase casto, com suas mortes. A menina Clarisse envelhecia, mas o tempo não passava, apenas os móveis trocavam de lugar, e as paredes, suas sombras.

29.3.04

Treze

Por que a vida insiste em perdurar em momentos de “quase-morte”? Será o nada, o Deus, o silêncio forçado que inquieta não só a Clarisse, mas a todos que abrigam o vazio em seus peitos? Clarisse ouve sua mãe chamando, lhe dizendo que precisa abrir os olhos ao falar com as pessoas. Os olhos de Clarisse estão cada vez mais serrados, expressando nervosismo. Começa a apertar seus seios com força, depois acaricia seus braços. A cabeça apóia todas perguntas sobre os joelhos. Sem respostas, elas não surgem limpas. Com um sabão barato lava seu monte de Vênus e ouve o vento de agosto. Ontem ela caminhava pela rua, buscando paz e calor, hoje ela busca o mesmo em outro lugar. O corpo adormeceu. Curar a alma através dos sentidos. Repetir, em busca do nada. Repetir e reinventar combinam? Sua pele sentia o gosto azedo da reinvenção. Cada dor que sentia era acompanhada posteriormente por alegria e calma. Ela já sabia de tudo que estava para acontecer.

Doze

Vermes rastejantes, os quais não sabia denominar, beijavam os pés de Clarisse com sua gosmenta frieza. Ela cheira entre os cotovelos, seu corpo fede. Seu próprio odor é sujo, mas não feio. Ela nunca havia sentido esse perfume com extremo prazer, olha para cima e seus olhos a enganam. As gotas voltam para sua origem, a chuveiro elétrico pisca no cubo com iluminação fraca. Clarisse fecha os olhos, sonha junto a sua paz e lágrimas. No colo da tristeza ela encontra seu estado bruto, naturalmente bela e sem peso. Confundisse com o musgo do canto, Clarisse mendiga por umidade e escuridão. Usa seu sentido favorito para triunfar perante seu amor. Com o tato ela sente cada cm3 de ar que a envolve. Sua pele toca suas fantasias, a água escorre ao contrário. Clarisse está feliz, os suspiros e o sorriso pincelado no seu alvo rosto revelam isso. A lembrança do vento canta em seus pensamentos, Clarisse se transporta para junto dessas lembranças. Vive de cenas recriadas, inventadas, repetidas. Há brotos no vaso com terra seca junto à janela.

27.3.04

Onze

Tantas vezes se está a beira da morte. É preciso confessar que é instante de extrema beleza, pois é uma bolha transparente envolvida de veneno cristalino. A morte e seus feitiços, a “quase-morte” dá uma sensação de nascer de novo. Sem ressurreição, pois cada “quase-morte” equivale a um fim, e daí a diante um novo começo (ou ao menos uma ilusão deste). Clarisse molha seus calcanhares, seus pulsos, o peito e só então fecha os olhos e recebe o cair da água. Ainda que todo vazio dê sentido a sua sinfonia desafinada, ela continua a apreciar alegrias infantis. Banhos de chuva, sorvete de pistache com muita cobertura de chocolate, perfume de jasmim, sol de janeiro e ventos de agosto. Nas suas lembranças ela tenta encontrar algo que se perdeu, algo que matou toda sua esperança. Voltando ao passado acredita poder renascer, Clarisse ainda sonha.
E se sonha ainda vive. O vazio que tanto adora é superficial, ela almeja o impossível, e isso é um traço que ela traz de sua infância. A maioria de suas lembranças não aconteceram, apenas existem em sua memória. Ela precisa de algo para se apoiar, então se apóia no nada das suas mentiras.
Mas serão tão falsas suas lembranças?
No canto cheirando a limo ela se acolhe como em braços maternos.

22.3.04

Dez

Recapitulando. Tudo que Clarisse considera como restos são benfeitorias do nada. A insignificância dá ordem ao caos da sordidez da vida. Sua poesia “restoriana” a fazia sentir prazer em sua engrenagem diária. Comer, se prostituir, pagar contas e dar bom dia ao dono da padaria faziam parte dessa engrenagem, do seu lado máquina da sociedade. Do resto, procurava se refugiar em seu já comentado palácio. Clarisse é artista da vida, musa do cotidiano contemporâneo, filha de maria. Puxou a descarga, sentiu-se descer naquele redemoinho. Deixou-se levar pela água, pelo som da engrenagem que segue além da janela. Desejou o contrário de todo aquele instante, desejou ser lavada, desejou tocar o avesso do nada. Ainda ficaram algumas bostas, esperou a caixa encher. Puxou novamente a descarga, e dessa vez viu a água girar pelo lado inverso do habitual. Não deu muita importância, ligou o chuveiro. Sentia-se calma.

Nove

A inquietação da sua alma acelera seus pensamentos. O irreal se mistura com sonhos e o passado acontecido de fato. Ela ainda lembra detalhadamente de seu corte, e das vezes que esteve tão próxima da morte. Ela está nua. Tenta chegar próximo da lâmpada que tenta berrar por claridade para ver sua pele. Pintas, manchas, sujeira e o perfume do nada. Clarisse muitas vezes tentou entender o que era o fim. Alguém (a qual lhe foge da memória) lhe dizia que a vida era feita de ciclos, e que um dia tudo voltaria a se repetir. Achava aquilo absurdo, pois até então sua vida insignificante era inválida demais para se repetir. Qual é a repetição do nada? Deixou-se cegar por alguns instantes de tanto fixar a íris na lâmpada elétrica. A dor que levava no peito só era aliviada quando conseguia não pensar. Tentando manter-se calma. Não quer desespero. Um dia alguém lhe identificou depressiva, ela não entendia o que era isso, apenas sentia-se bem da forma como estava. A dor já havia se tornado companheira, e sua grande amiga. Chorar era perder a calma. Sozinha, Clarisse dizia a si mesma que lágrimas somente em momentos de prazer, lágrimas e dor são restos.

Oito

No cubo onde se encontrava, tinha tudo que mais adorava, e de que considerava essencial para sua existência. Violetas secavam na micro janela por onde uma gota de sol insistia em entrar, o mofo inevitavelmente tomava conta das paredes com raros azulejos. Mas não era disso que Clarisse precisava. Não era o cheiro de musgo e paredes coloridas por teias e excrementos (dela e) de insetos que enalteciam em poesia, mas suas velhas armas para o suicídio. Tantas tentativas de uma vez por todas ser o nada. E seu ridículo lado humano a fazia perder as forças. Mas desde muito ela vem se preparando, se fortalecendo em sua própria insignificância para realizar seu maior desejo. Os olhos estão tranqüilos, mas ela se sente nervosa. Será o avesso que se manifesta atrás das manchas sujas do espelho? Não... ela precisa tocar. Ela quer sentir o medo, lágrimas molham o seu peito.

Sete

Seu palácio podia ser visto através do espelho. Quando criança ela os temia, chegava a ter pesadelos com imagens suas, refletidas de forma horrorosa por diversos e horripilantes espelhos. Todos traziam sujeira em sua borda, e no centro uma luz nítida dava destaque aos olhos. O medo a encantou com o passar dos dias, e naquele reflexo, onde via terror, encontrou abrigo e adoração. Nada de narcisismo, mas encontrou um desconhecido que a encantava: seu olhar. Ela nunca tinha certeza de como seria seu olhar cada vez que se deparasse com seu reflexo. E essa espreita a inquietava, levando sempre consigo um espelho. Nada de vaidade, como foi dito, mas apenas a excitação pelo desconhecido.
Demorou um pouco até puxar a descarga, os cheiros ainda se misturavam. Foi novamente para frente do espelho. Queria não pensar em nada, esquecera o trabalho, o leite no fogão, as contas atrasadas, só queria a luz raquítica e fedor de merda como sordidez naquele momento, para ela aquilo tinha grande valia dentro dela. Isso e seu vazio. Seus olhos traziam um silêncio ao mesmo tempo angustiante e anestesiante. Isso hoje.

21.3.04

Seis

Seu professor da escola um dia lhe falou sobre niilismo. Gostou do que ouviu, e sentiu que se desprender de verdades lhe deixaria leve. E melhor que isso, a ignorância e a indiferença lhe trariam o nada, deixando-a mais perto do seu amor. Ela limpava primeiro o mijo misturado com a porra, depois de úmido o papel passava em seu ânus para tirar a merda mais facilmente. Não se importava com doenças, mas não gostava quando essas aconteciam. Ainda ficou sentada, vendo a luz entrar e tentar tocar os cantos mudos. Olhou suas mãos pardas, sujas. Acariciou novamente sua cicatriz, e suspirou num belo sorriso.

Cinco

A luz cinza que entrava como fugitiva dentro do banheiro, se enaltecia com o cheiro de merda, gozo e mijo. Enjoada e excitada era como se sentia Clarisse cada dia que executava seu ritual. Não via sentido algum para o que ela fazia, apenas sentia prazer naquele vazio posterior. Mas vamos nos centrar no ato da masturbação. Tentava não pensar em nada. Mas o tudo sempre a atormentava como uma sombra. Então resolvia receber o tudo. Captava com a maior intensidade todos sons, cheiros, e fechava os olhos para se entregar ao infinito, até chegar ao instante em que tudo perde o sentido. Ela via no gozo a forma mais perfeita do nada, por isso preferia se masturbar, pois junto de outro corpo não gozaria do vazio exterior. Para ela o nada precisava ser completo. O vazio deve ocupar dentro e fora.

Quatro

Kundera faz uma longa reflexão a respeito do kitsch em um dos seus livros. Agora por exemplo, porque eu não disse simplesmente que ela iria defecar, ao invés de sentar minha personagem em um vaso sanitário?
Kundera citou dos nossos pudores, que foram criados por nós desde que Adão foi expulso do paraíso. E definia o kitsch como “estação intermediária entre o ser e o esquecimento” (epitáfios cotidianos).
Assim como a merda é negada por nós, por ser algo fedido e nojento, assim negamos o que nos parece ofensivo e vulgar. Isso é o Kitsch.
Mas tudo isso é estética, moral. Clarisse se masturbava cada vez que defecava. O seu excremento, o seu fedor, era algo que para ela, representava a transpiração de tudo que a insignificância pode nos dar. Viver para ela, não possuía diferenças, pólos. Viver era nada, e isso, como já disse, a excitava.

Três

Do lado esquerdo do rosto, está gravada a lembrança de um domingo com ar acre. O ar com que toca a cicatriz é doce e nostálgico. Perto do seu olho, a sensação de escuridão que a tomou quando ocorreu o corte. Ela imaginava viver no infinito para sempre. Perdida no que mais ama. No nada, saberia que seria livre, leve. Não teria mais o peso de olhar nos olhos das pessoas que mentem para ela.
Clarisse suspira frente ao espelho, lembra-se de um livro que lera quando pequena, e que a marcou bastante. A história de uma menina que conseguia passar para o outro lado do espelho, e ver (e viver) todas as coisas ao contrário. Ah, como ela desejava saber como é o nada ao contrário.
Agora olha novamente a cicatriz. Vê como sua pele se fortaleceu depois de curada a ferida. Vê como seus olhos escureceram desde o amanhecer. Lava mais uma vez o rosto, e senta-se no sanitário.

Dois

Quando as idéias sobre o nada começam a fazer sentido, nos sentimos com um enorme vazio no peito. Clarisse tinha quatorze anos quando começou a sentir os sentidos do vazio. Não tinha a extrema noção do que sentia, mas acreditava ser guiada pela intuição. Mas sentir o nada é algo que a excitava de forma, digamos, mística. O nada a elevava, e esse nada chamava de Deus.
È preciso compreender que desde que nascemos, nós ocidentais, somos criados com a ideologia do perdão. Num país, onde as religiões nunca foram levadas a sério, acabamos sempre por perdoar e seguidamente sentir compaixão daquilo que nos ofende, ou como muitos dizem, “nos fazem mal”.
Clarisse ainda lembra da sua mãe, de como era bondosa. A passividade se tornava agressiva a ela, pois ser bondosa, na terra de Clarisse, significava ser submissa.
O engraçado que sempre que queremos contar a história de alguém, precisamos falar sobre a mãe. Juro que queria evitar que isso ocorresse, mas a mãe de Clarisse é fundamental para chegarmos a prisão que ela construiu dentro do espelho. Pois foi no vazio do olhar de sua mãe, que veio a sua maior herança: a tristeza e o nada do mundo.

Um

Parecem dois amigos. A cumplicidade revelada no olhar, mas somente quando escova os dentes. De manhã, ainda com os primeiros raios tudo possui leveza. Com o passar das horas o olhar amigo, suave, vai tomando novas cores, sombras vão pousando sobre sua face.
É segunda-feira, o reflexo capturou sua imagem. Fica observando a outra, que não é nada além do que o contrário. Mas será? Tudo será tão avesso quanto suponho?
A dor corta, ainda é segunda-feira. Hoje decidiu não ir trabalhar. Resolveu viver a outra que há atrás do espelho.