26.6.04

Vinte

É segunda-feira, só disso se lembra. O que nesse mundo faz sentido? Ela tem o peso do mundo. Eu também o tenho. Por isso olho Clarisse, e a sinto, e a amo. E isso importa? Clarisse vive num mundo onde mal percebe, mas que é preenchido pelo vazio. Será ela, cria do nada? Ou ela nada criou? Do nada deus gerou o universo. Clarice quer do universo gerar o nada. O contrário de deus é Mefisto, ou ignorância da sua existência? Destruir é rápido. Clarice nunca viu o mar, o campo, o verde, o anil, pontos pratas no escuro. Sempre viu melhor de olhos fechados. Saberia entender logicamente o cotidiano, se tudo fosse simétrico. A pobreza é subjetiva. Terá ouvido a chuva? A umidade demora a baixar. Todo ar é denso. As unhas dos pés estão cumpridas e sujas, seu dedo mínimo do pé esquerdo está com frieira. Cobre-se do frio com a toalha úmida. Se soubesse da sua beleza não seria tão magnífica. Retrato perfeito da contemporaneidade. Seus olhos vermelhos quase sangram, a cabeça acolhe-se no colo dos seus próprios joelhos.

Dezenove

E gerar-se.Quem plantou as violetas? Todas suas criações morreram. Ou assassinadas e depois devoradas pela mãe. Haviam bonecas. Clarisse pedia bonecos grandes de presente para poder se masturbar.”Acho que veio minha menstruação”. Seu hímen rompeu com a mão de uma boneca. L-I-B-E-R-D-A-D-E – Clarisse soletrava. Letra soltas com péssima consonância. Acima de tudo sem significado real. Ela gostava das letras dessa palavra. Muitas vezes acreditou ser livre presa ao nada. Mas até que descobriu, que ambos, ainda não encontrara. Boneco Maneco. O lençol manchado de sangue podre e sereno. Como uma velha brincadeira, Clarisse nina seus seios, alvos e frágeis. Mais calejados que qualquer outra parte. Com esse mesmo peito, Clarisse topou o vento agonizante, geladas vezes. Nu e perplexo, assim, até hoje, se porta o colo asmático de Clarisse. A prisão desse reflexo ainda guarda muitos monstros, prestes a serem exorcizados (ou reinventados). Do eco do seu útero, muitos filhos serão criados.

Dezoito

Cega em seus sentidos. Hoje não há mais saberes, e como sempre não há certezas, nem mesmo a certeza do morrer. O silêncio do não-ser, o sopro invisível que aviva a derme. Clarisse não cogita amanhã, mal lembra do agora, ela apenas sente as horas se arrastarem. Em seu cubo, em seus traços fortes, em tudo que lhe falta, Clarisse, inspira, reconhece-se, expira, abre a porta chega em casa. Longe, longe, também demorado, a cada passo, mais o teto se enche de sombras. A queda vem para trazer conforto ao coração de Clarice. Com os sentidos cegos ela mama no colo materno, funga o peito com força e chupa seu seio a procura de laços consigo mesma. Ela quer sentir seu ventre, e recebe como resposta o ronco de suas tripas. Encurvada, a-feto. Levanta-se e vai até a caixa do armário. Reencontra os rotineiros comprimidos, procura algo de cabo longo. Ela precisa sentir o ventre. Com a escova dental ela se esforça, até que nota sua secura. Seu útero que nada gera, e felizmente nada gerará. Vazia, Clarice quer voltar pra dentro do seu nada.