29.7.04

Vinte e Quatro

Um tesouro num fundo falso no assoalho da casa de sua avó. Uma de suas primas se revolta com a infância pobre que passou e pelo irmão que esteve doente e ficou paraplégico. Tanta riqueza vale a cura de males e a busca de conforto? A prima berra, chamando-a de mesquinha. A avó paralisada, esconde garfos de prata no cós da saia. Clarisse pensa pela sua vó, pensa no que é justo. É mais um sonho. Há mundos através do espelho? Por que a avó nunca disse nada sobre o tesouro? Os perversos sempre mereceram proteção e honrarias, para Clarisse. A gosma salivar seca no meio do espelho. Clarisse sempre acreditou que o universo paralelo ao reflexo, fosse oposto ao que ela vive. Haveriam duas Clarisses, quer dizer, uma Clarisse e um Essiralc. E se realmente tudo não passar de um reflexo sujo? Acreditava que Essiralc levaria um vida repetitiva, igual a dela, somente com o significado oposto. Afinal, para que no mundo serviriam duas pessoas idolatrarem o nada? Essiralc, ao contrário da tristeza infinita com que Clarisse encara a vida, aceitaria a dor como um presente. Segundo a matemática, o oposto do positivo é o negativo, no caso de uma parábola com o arco voltado para baixo, o seu oposto seria o arco voltado para cima. Arco voltado para cima era Essiralc, que sorria a cada choro de Clarisse. O grito é nulo, e ambos gritam. E quem é reflexo? Clarisse saliva lembrando do gosto de comer usando talheres de prata. Haviam muitas cobertas em seu sonho. Cobertas cheirando a gozo velho. Lá fora chovia. Um pedaço de limo cai do forro sobre seu colo. Eu procuro saber o que sustenta Clarisse. Seu ar de santa satânica me indica para sua fé, mas Clarisse acolhe espelhos dentro dela, e isso constrói labirintos que afugentam respostas.

Vinte e Três

As cores são jogos de luz. As cores formam imagens, tornam a vida alegre e sombria. As cores despertam sensações e curam doenças. As cores são jogos de luz, jogos são ilusões. Perceber é uma mentira. Doce e dolorosa mentira. Um bom emprego, um bom companheiro, uma boa amiga, um bom par de pernas, Clarisse tem todos os materiais para a vida feliz. Destruir é rápido. Ruínas são o nada? Ainda haverão herdeiros depois de tudo acabado. O podre irá persistir, e o divino abençoará a dor com poesia. Clarisse é devorada entre suas pernas, o vento suga o caldo mucoso e salgado. Nas asas do sopro frio, germes serão espalhados, e sucumbidos pela goela da mãe terra, que os abrigará. Somente a terra abriga os restos. No fim, só a terra nos ama podres. Justificar-se é buscar fé em si mesmo. Admitir o desejo de ser comida é a forma de louvor à fraqueza, feita por ela. Quais intenções não são puras e putas?

Vinte e Dois

Uma escritora vulgar, escreveu num desses papéis que se perdem, que o sono é desculpa do vazio que cansa. Quando não há mais lágrimas, nem mais desespero, dorme-se, acreditando que o nascer do sol nos trará o supremo bem junto com seus primeiros raios. Acredita-se tanto no poder do novo dia, talvez por ser novo, talvez por a esperança ser o único voto ainda existente com relação à felicidade. Os dias nascem nublados, e o nada persiste. Há vazio no tudo para se fazer. Eu queria tanto que Clarisse se permitisse, gostaria tanto de saber para o quê, ela deve se permitir. Bom-dias, boa-noites, sinto-muitos, por-favores, e toda a maldita linguagem, tudo isso cansa, e isso é tomado por vazio. Em que dias, em que mundos é possível dizer sim e não para os Sins e Nãos vazios? Por onde se começa limpar, pelo mais sujo, ou tirando o pó da superfície sem deixar de olhar o céu? Clarisse inventa mundos para si, confesso que a invejo, tão cria de si mesma. Tão frágil e seca, encontrou o prazer em suas mãos. O verdadeiro está cego, e ela ri ao lembrar disso. Nem todo dia se chora, mas os pulsos sangram à cada fuga, à cada "depois-penso-nisso". E não se pensa, não se dorme. E a morte chega, e se descobre que nunca se foi livre. É sempre noite nos olhos semi-abertos de Clarisse. Ela se suporta, sabe que seu reflexo é uma imagem torta, é mais um risco abstrato procurando interpretação. Há poesia, há objetivismo, há pobreza, há compaixão, há cuspe escorrendo pelo espelho, há auto-mutilação, há cansaço.

Vinte e Um

Uma idéia brilhante, viver cansa. Clarisse quer matar sonhos. Ela tem medo, falta-lhe vontade. Triste. Nasceu numa cidade de nome alegre. Ela morre todo dia. Perdendo a castidade. A luz azul transforma o amarelo em ouro. No escuro se tem traços fiéis do toque. Eu toco Clarisse que corre para não sei onde e grita doce à dor. Chato (piolhos vermes) existir. E persiste, sem ajuda. Ela chora, foge dos reflexos e das horas e das luzes. A luz mente. Luz demais também cega. Eu sou estúpida ou Clarice realmente cospe no mundo? Amanhã é quase hoje. O nada importa, nada mais importa, importa. Lágrimas lambem as costas da mão direita. O sono jaz sobre seu corpo.